Anabela Araújo, 28 anos nas Nações Unidas
Desde 1994 no sistema da ONU em Angola, Anabela Araújo conta a sua trajectória no PAM numa entrevista exclusiva.
Nascida em Angola, Anabela Horário Maralde Araújo juntou-se às Nações Unidas em 1994, como Secretária do Programa Alimentar Mundial (PAM) no município do Sumbe, província de Cuanza Sul. Saindo para se aposentar neste ano, a Anabela fala dos seus 28 anos no sistema das Organizações das Nações Unidas (ONU) em Angola.
Porque aderiu à ONU e ao PAM em particular?
Eu trabalhei na área da educação, era professora e tinha também uma responsabilidade a nível da Direcção Provincial de Educação de Cuanza Sul na área de apoio metodológico aos professores. Juntei me ao PAM por causa do trabalho que eu gostava de fazer mais, que era trabalho de campo, falar com as comunidades, andar de cima para baixo e trabalhar nas zonas mais remotas. Enquanto trabalhava na educação, eu já fazia este tipo de trabalho nas comunidades para dar suporte aos professores. Então, pela minha boa prestação, depois de começar a trabalhar no PAM como Secretária, apliquei para posição de Agente de Campo. Fui selecionada e baseada na província da Huíla. Daí, comecei a gostar imenso do PAM pela actividade que desenvolvia.
Qual foi a sua trajectória no PAM, Anabela?
Comecei a trabalhar no PAM em 1994 na província do Cuanza Sul e depois fui para Lubango na província da Huíla onde estava baseada o nosso Escritório Regional. Eu dava assistência para três províncias que são: Huíla, Namibe e Cunene onde trabalhei até 1997. Fui transferida para Lobito, na província de Benguela onde trabalhei por muitos anos e depois regressei para Lubango até 2005 e posteriormente de Lubango para Huambo e depois para província do Bié. Finalmente, em 2009 fui transferida para Luanda. Foi a altura em que o PAM estava a fazer a redução do pessoal, com a intenção de fechar o nosso escritório. Mas em 2010 recebemos a primeira delegação de alto nível para iniciar as conversações com o Governo de Angola para assinar o novo Acordo de Cooperação. As negociações continuaram até 2019 quando se assinou o muito esperado o Memorando de Entendimento (MoU) entre o PAM e o Governo de Angola. É sobre este MoU que hoje o PAM está a desenvolver os diversos projectos que temos actualmente. Até 2009 as nossas actividades eram na vertente de emergência e recuperação e estavam alinhados com o Acordo de Base assinado em 1992. O novo Acordo de 2019 foi virado mais para assistência técnica e tinha três grandes pilares que são: alimentação escolar, nutrição e fortificação de alimentos e a análise de vulnerabilidade.
Qual foi a experiência mais memorável que teve em 28 anos de trabalho no PAM?
Durante a minha jornada no PAM, aconteceu alguma coisa que marcou me bastante, isto foi em missão de trabalho durante 8 dias quando andávamos em caravana com a equipe do PAM, juntamente com a UNICEF, OMS, e outras ONGs e parceiros para uma assistência humanitária nas áreas mais remotas à 50 km do município de Cuvango, na província da Huíla, numa altura de guerra. A certa altura, ouviu-se uma explosão à distância, os alarmes dos carros foram acionados assim que a explosão aconteceu. Fiquei aterrorizada por pensar que seríamos atacados, afinal, era uma mina antitanque que desfez a parte traseira do caminhão e os rodados do caminhão pararam à 300 metros do local do acidente. A caravana teve que parar durante 42 horas, a equipa chegou perto e deu os primeiros socorros, e por conseguinte, tivemos que dormir na estrada por precaução. Acabamos por ficar sem água e sem comida suficiente para consumo e foi aí onde eu aprendi a comer cogumelos frescos. Uma equipa da Missão de Verificação das Nações Unidas para Angola (UNAVEN) tinha sido informada sobre o acidente ocorrido, o resgate chegou dentro de 48 horas. Entre colegas, houve apenas um ferido grave que foi evacuado de helicóptero. Estou grata por todos terem sobrevivido ao incidente. Com esta experiência, aconselho e recomendo as pessoas a terem cuidado enquanto se deslocam para áreas remotas. Essa foi uma situação que não é para esquecer, foi algo que me marcou para sempre porque quando as nossas famílias souberam do que tinha acontecido, só sossegaram quando nos viram chegar a casa salvos.
Quais foram os maiores sucessos ou realizações no PAM?
A minha maior realização foi apoiar as pessoas necessitadas atrás do PAM. Dar assistência às populações carentes “Salvar Vidas e Mudar Vidas”, foi uma das grandes realizações para mim. Até hoje eu sinto me muito feliz de poder ter contribuído através do PAM neste aspecto. A gente passava fome, passava frio, dormia no carro, algumas vezes estava bem doente, mas enquanto me sentisse normal, tomava comprimido e ia trabalhar nas áreas remotas. Foi difícil, passamos por situações más, situações perigosas e complicadas, mas no final, isso foi gratificante.
O que aconselharia aos jovens que estão a começar uma jornada na ONU?
Aconselho que se empenham mais e que gostam mais ainda do tipo de trabalho que estão a exercer; em suma, é ter amor à camisola e não vêm somente para ganhar dinheiro, pois isso não resulta.
Naquela altura quando eu fui para Luanda, eu não sabia nada e nem como fazer alguma coisa, o meu trabalho era Agente de Campo, não era trabalho administrativo. Mas em Luanda tinha que fazer até o trabalho de Tecnologia de Informação (TI). Pedi o apoio dos colegas do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em Angola e colegas do PAM da África do Sul. Através das orientações do nosso Escritório Regional, consegui, com algumas instruções via telefónica, reconfigurar antena satélite para eu puder trabalhar. Foi muito difícil, mas quem não sabe, pergunta, e eu perguntava. Não sabia, perguntava, pedia o apoio dos colegas. Por exemplo, eu também fiz Cadeia de Abastecimento “Supply Chain” durante algum tempo sem ter tido nenhuma formação nessa área, mas consegui.
Eu acho que não devemos ter esse tipo de resposta “não vai dar”, “não vou conseguir”. Isso não é resposta, primeiro – tenta, tenta uma vez, tenta a segunda vez, e assim vais conseguir. E isto aconteceu comigo. Eu pensava que não podia fazer determinadas coisas, mas tentei, procurei, perguntei, e isto me fez crescer e aprender. E neste momento, se calhar, eu consigo fazer de tudo aqui no PAM porque passei por tantas coisas. Posso fazer Supply Chain, posso fazer finanças, sobre todas as áreas eu tenho a mínima noção.
Quais foram algumas das principais mudanças que viu na ONU/PAM durante estes 28 anos?
Na minha época, quando comecei a trabalhar no PAM, não tinha computadores, não tínhamos internet e eu usava máquina de datilografia para escrever e atualmente já temos internet, computadores e uma tecnologia avançada que facilitam o nosso trabalho diário. A máquina de escrever que eu tinha era pequena, as comunicações fazíamos através da rádio e sistemas Telex. Quando errasse ao escrever, tinha que apagar com a borracha e pôr outra vez o químico. Eu comecei a trabalhar assim. Não obstante, essa é uma grande evolução que pude notar no decorrer dos anos desde a minha entrada no PAM.
Quais foram os principais desafios que enfrentou enquanto trabalhou para a ONU/PAM?
Quando nós começamos a nossa primeira assistência aos refugiados provenientes da República Democrática do Congo na Lunda Norte, eu tinha que fechar o escritório e ir para Lunda Norte. Os colegas do escritório regional me chamaram e deram me ordem “Anabela, tens que ir para Dundo” Então, como é que eu vou? Olha, pede suporte no Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR)”. E eu, com a minha mochila às costas e botas, fechei o escritório e fui para Lunda Norte para receber refugiados. Eram centenas e centenas de refugiados por dia que chegavam na fronteira. Ficávamos a fazer o registo dos refugiados até a noite, tínhamos que usar os nossos telefones que serviam de lanternas para iluminar a fim de escrevermos. E eu estive lá por muito tempo. A gente não tinha feriado e nem Sábado, e nem mesmo a hora do almoço. E quando regressei a Luanda, tinha os meus pés queimados por que só usava botas... mas foi bom.
Para mim, o PAM foi um dos maiores desafios que tive, porque eu pude aprender e crescer profissionalmente dentro da organização. Eu quando comecei a trabalhar no PAM, a minha filha tinha dez anos, hoje a minha filha já tem o filho com dezasseis anos. Portanto, ela só conhece que a mãe dela trabalhou apenas no PAM por toda vida.
Acima de tudo, estou feliz porque a minha missão no PAM foi cumprida, apesar de ter sido necessário muito empenho e dedicação para tornar isso possível. Obrigado ao PAM e a todos que estavam comigo nessa linda e maravilhosa jornada.